Crónica: Comportamento discriminatório incompatível com a dignidade da Assembleia da República
- Eva Cruzeiro
- há 4 dias
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Atualizado: há 3 horas

Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República,
Trago ao conhecimento de V. Exa. factos com relevo para a gestão dos trabalhos parlamentares e para a garantia da urbanidade e correcção na relação entre Deputados, ocorridos no passado dia 29 de outubro, no decurso da audição do Senhor Ministro da Presidência, no âmbito da apreciação, na especialidade, do Orçamento do Estado para 2026.
Na sequência de uma questão que coloquei ao Senhor Ministro da Presidência, acerca da necessidade de formação especializada para funcionários públicos que contactam diretamente com imigrantes, num quadro de agravamento do discurso racista e xenófobo no espaço público, fomentado principalmente por um partido de extrema-direita, cujo nome não mencionei, o líder parlamentar do Chega, Senhor Deputado Pedro Pinto, solicitou a palavra para defesa da honra da sua bancada.
Reitero que, até esse momento, não tinha feito qualquer menção ao partido Chega. A minha intervenção foi realizada em tom calmo e cordial, ao contrário da intervenção do Senhor Deputado Pedro Pinto que foi, a meu ver, marcada por um tom agressivo, inclusive quando se dirigiu à Presidente da 1.ª Comissão, tendo-me acusado de forma infundada de ter proferido um discurso de ódio, o que não corresponde ao tom da minha intervenção.
Durante e após essa intervenção, vários Deputados do Chega proferiram expressões e adoptaram comportamentos que considero justificar uma análise detalhada das gravações das câmaras no plenário. Ademais, houve um episódio particularmente evidente e perceptível a todos os presentes: o Senhor Deputado Filipe Melo, membro da Mesa da Assembleia da República, visivelmente exaltado e de pé, proferiu de forma reiterada insultos dirigidos à bancada do Partido Socialista e, concretamente, gritou-me “volta para a tua terra”, acompanhando a referida expressão com gestos explícitos que indicavam a minha expulsão, confirmando, de resto, em tempo real, o que eu acabara de afirmar acerca do agravamento do discurso racista e xenófobo no espaço público, legitimado e difundido pela extrema-direita.
Os factos descritos violam o princípio de urbanidade e lealdade institucional, consagrado no artigo 5.º do Código de Conduta dos Deputados, e o dever de os Deputados intervirem com urbanidade, abstendo-se de comportamentos que não prestigiam e respeitem a dignidade da instituição, previsto na alínea f) do artigo 9.º do mesmo Código e na alínea e) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto dos Deputados. Acresce a proibição de apartes injuriosos ou ofensivos constante do n.º 3 do artigo 89.º do Regimento da Assembleia da República, cabendo ao Presidente advertir, censurar e adoptar as medidas disciplinares adequadas, nos termos do artigo 18.º do mesmo diploma.
Para além do quadro interno, recordo que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia impõe a igual dignidade (artigo 1.º) e a proibição de discriminação, designadamente por raça e origem étnica (artigo 21.º), e que a Decisão-Quadro 2008/913/JAI obriga os Estados-Membros a tipificar e sancionar eficazmente as manifestações graves de racismo e xenofobia, incluindo as proferidas por titulares de cargos públicos. Estes padrões europeus reforçam o dever institucional de reacção célere e eficaz a linguagem que atente contra a dignidade e a igualdade.
Importa ainda lembrar que, não obstante o Senhor Deputado Filipe Melo beneficiar da imunidade parlamentar prevista no artigo 157.º da Constituição da República Portuguesa, os factos em apreço revestem uma gravidade tal que, em qualquer outro contexto fora do exercício de funções parlamentares, poderiam consubstanciar responsabilidade criminal, nos termos do artigo 240.º do Código Penal, que pune as condutas de discriminação e incitamento ao ódio ou à violência com base em raça, cor ou origem étnica e nacional.
Quando o artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) consagra a liberdade de expressão, fá-lo no quadro constitucional que tem a dignidade humana como fundamento (artigo 1.º CRP) e a igualdade como princípio estruturante (artigo 13.º CRP). A liberdade de expressão não pode, assim, ser interpretada de modo a destruir os próprios valores que a legitimam.
A declaração “volta para a tua terra”, dirigida a uma cidadã portuguesa e baseada na sua origem racial, viola simultaneamente o princípio da igualdade (artigo 13.º CRP), ao negar cidadania plena com base na raça; o direito à identidade pessoal (artigo 26.º CRP), ao questionar a identidade nacional da cidadã visada; e o fundamento da dignidade humana (artigo 1.º CRP), ao tratá-la como cidadã de segunda classe.
É evidente que o “volta para a tua terra” que me foi dirigido não se referia à cidade de Lisboa, onde estávamos e onde nasci, mas a África, como sucede sempre que uma pessoa negra portuguesa é atacada desta forma. Fui assim abordada desde criança, quando o único país e o único mapa que conhecia eram os de Portugal. Posso fornecer mais detalhes sobre essas experiências, tal como o poderão fazer muitos cidadãos negros e de outras origens étnicas, académicos e outros profissionais que estudam ou vivenciam estas realidades, caso V. Exa. entenda ser relevante para a apreciação deste caso.
O artigo 240.º do Código Penal criminaliza precisamente a discriminação racial, com penas até oito anos de prisão, demonstrando que o legislador português, em conformidade com a Constituição e com as obrigações internacionais e europeias do Estado, não tolera o discurso de ódio racial. Tanto a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigos 1.º, 21.º e 52.º), como a Decisão-Quadro 2008/913/JAI, impõem aos Estados-Membros o dever de prevenir e sancionar eficazmente o incitamento ao ódio ou à discriminação racial. Estes instrumentos reflectem uma visão comum: a liberdade de expressão termina onde começa a violação da dignidade humana.
Face a este quadro constitucional, penal e europeu, não há margem para dúvidas: o que ocorreu não é uma divergência de opinião ou uma manifestação de liberdade política, é uma violação dos princípios estruturantes da República, um atentado à dignidade da pessoa humana e um comportamento incompatível com o exercício de funções parlamentares.
A conduta descrita pelo Senhor Deputado Filipe Melo pode ser observada nas imagens disponibilizadas pelo Canal Parlamento na transmissão da referida audição, sendo, caso necessário, igualmente possível identificar outros Senhores Deputados e Senhoras Deputadas que assistiram aos factos. Atenta a utilidade da recolha de elementos adicionais para a instrução do procedimento, solicito, desde já, a obtenção das imagens recolhidas pelo Canal Parlamento no decurso da referida sessão que, para além daquelas transmitidas, possam reforçar os elementos probatórios relevantes para a decisão.
O racismo e a xenofobia são inaceitáveis em qualquer circunstância e continuam a afectar, de forma profunda e persistente, milhares de pessoas no nosso país, desde a infância até ao fim da vida. Independentemente das convicções políticas ou ideológicas os Deputados(as) têm o dever de agir com respeito, lealdade e urbanidade, designadamente, na relação com os seus pares. Ademais, enquanto 3 representantes eleitos e membros da Assembleia da República, um dos órgãos de soberania de Portugal, os Deputados têm uma responsabilidade acrescida. Qualquer conduta imprópria por parte de um deputado não só compromete a sua ação individual, como impacta nos cidadãos eleitores, fragilizando a confiança dos cidadãos nas instituições e na própria democracia.
Por tudo quanto ficou exposto, solicito a V. Exa. que este caso seja analisado com a atenção que exige, isto é, não apenas como um episódio individual, mas como expressão de um problema que a Assembleia da República tem o dever moral e constitucional de repudiar e corrigir. Cabe-nos, enquanto representantes do povo português, dar o exemplo de que em Portugal nenhuma manifestação de racismo, xenofobia ou qualquer outro tipo de discriminação, é tolerada e de que todas as vítimas deste tipo de ataques podem contar com a defesa intransigente da lei, dos seus representantes e das instituições.
Pelos fundamentos expostos, e atendendo ao facto de estar em causa um Sr. Deputado que, ademais, exerce funções como membro da Mesa da Assembleia da República, solicito a V. Exa. que, nos termos do artigo 18.º do Regimento e do artigo 27.º-A, n.º 1, alínea j), do Estatuto dos Deputados, ordene a abertura de inquérito pela Comissão da Transparência e Estatuto dos Deputados (CTED).
Com elevada consideração,
Palácio de São Bento, 07 de novembro de 2025
A Deputada,
Eva Cruzeiro


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