Crónica: A arquitectura da igualdade que ainda não Construímos.
- Eva Cruzeiro
- há 4 dias
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Atualizado: há 3 dias

Tudo começou com um almoço simples. Com a pausa temporária de Pedro Nuno Santos no mandato, entrou para o nosso Grupo Parlamentar a deputada Lia Ferreira, mulher brilhante e com deficiência motora, com quem tenho convivido e aprendido bastante. Convidei-a para almoçar no meu restaurante preferido do parlamento, no terraço do edifício novo. Respondeu que era melhor irmos a outro, porque o caminho era mais complicado. Entre o edifício antigo, onde fica o seu gabinete, e o novo onde fica o meu e o restaurante, as escadas tornam a ligação intransitável para quem utiliza cadeira de rodas. Para uma reunião, uma audiência ou apenas para almoçar, coisa que todos fazemos muitas vezes, a Lia cumpre outro trajecto, um trajecto mais longo, mais demorado e obviamente mais cansativo. Aquilo que para mim são poucos metros a caminhar, para ela é uma travessia.
Esta situação fez-me caminhar pelo Parlamento com outros olhos. Um espaço que deveria ser de todos não o é. Pessoas cegas, surdas, com deficiência motora ou com limitações visuais, auditivas e cognitivas não circulam ali com a mesma liberdade. Os tapetes vermelhos, símbolo de solenidade, convertem-se em barreiras. As rodas ficam presas, o esforço multiplica-se e o corpo de quem as move sobre elas paga a factura.
Abdicamos do restaurante que eu sugeri inicialmente e fomos a outro, também bom, mas ninguém deveria escolher onde almoça por motivos de acessibilidade. Ao empurrar a cadeira da Lia, senti a diferença entre o chão com e sem tapete. Cada desnível e cada textura alteram o esforço e transformam a deslocação num exercício de força. O que devia ser um espaço de representação e dignidade é, para ela e para outros, um campo de obstáculos. Como é possível que, em 2025, a casa da democracia não esteja preparada para todos os corpos que nela habitam ou possam habitar? Não esteja preparada para todos os cidadãos de Portugal? Está preparada para todos os visitantes? Para pessoas cegas? Para pessoas surdas? É fácil perceber que não. Se no Parlamento, onde se representa todo o povo português, a acessibilidade é incompleta, como será nas escolas, nas universidades, nas empresas, nos serviços públicos, nas discotecas, nos jardins, nos transportes, nos centros comerciais, nas ruas que cruzamos sem pensar?
Se onde se fazem as leis ainda há escadas que separam uns dos outros, quantas portas continuarão a fechar-se lá fora? Quantos convites não se fazem porque é complicado o acesso? Quantos jantares, reuniões e oportunidades se perdem por simples falta de planeamento? Quantas vezes o silêncio social se confunde com esquecimento? E como é que a indiferença de quem já devia ter resolvido isto continua a afectar a vida de milhares de pessoas?
Não sendo especialista em mobilidade, desde esse dia caminho com outro olhar. Vejo rampas inclinadas demais, passadeiras sem rebaixamento, passeios onde não cabe uma cadeira, casas de banho ditas adaptadas que não permitem fechar a porta, edifícios recentes que ignoram o mínimo. Quantas vidas são limitadas não pela deficiência, mas pela ausência de condições? Pela ausência de decisores que pensem os espaços como espaços para todos? Quantas exclusões começam no desenho do espaço?
Mesmo no restaurante mais acessível onde fomos almoçar, o espaço é estreito, as mesas estão demasiado próximas e o percurso entre elas é apertado. Nada foi planeado a pensar em todas as pessoas. A estrutura do Parlamento, erguida para representar todos, tem esquecido alguns. No edifício antigo, a época de construção explica parte do problema, no dito edifício novo não, várias adaptações continuam por cumprir. Vi uma plataforma para cadeiras de rodas em umas escadas, mas percebe-se que foi feito o mínimo, apenas o suficiente para se dizer que se fez alguma coisa. Como toleramos isto? Como conseguimos ignorar, colectivamente, o que está diante dos nossos olhos? Como é que, na própria Assembleia da República, esta adaptação continua por fazer? Como ignoramos os direitos de tantas pessoas?
Sempre lutei contra as desigualdades e percebi que, sem querer, também eu tinha ignorado esta. E sinto-me mal. Eu falhei de forma inaceitável. A acessibilidade não é detalhe técnico. É justiça espacial, igualdade material e condição de cidadania plena. É uma questão de direitos humanos. A casa da democracia deve ser a primeira a cumpri-los, enquanto deputada devo ser a primeira a exigi-lo. A inclusão não resulta de medidas paliativas, mas de uma cultura de desenho universal, sustentada por planeamento estratégico, investimento continuado e compromisso ético com a dignidade humana.
Ver a Lia enfrentar estes obstáculos com serenidade e força obrigou-me a ver o mundo com outros olhos. A luta pela igualdade que defendo só é verdadeira se incluir todos, absolutamente todos. A dignidade não se cumpre apenas com o direito de estar, cumpre-se com o direito de participar plenamente. Uma democracia é verdadeiramente adulta quando o seu espaço público reflete, em cada detalhe, o respeito por todos os que a constroem.
Escrito por Eva Cruzeiro


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